CRIOULO - Cabo Verde e os 800 anos da língua portuguesa: Uma relação umbilical e fatal 02 agosto 2014
A língua portuguesa celebra agora oito séculos de vida. E o crioulo de Cabo Verde, o primeiro filho que gerou nos trópicos, na confluência de rotas, gentes e culturas já conta mais de 500 anos. Sim, porque antes mesmo do português chegar à América ou à Ásia criou uma língua nova forjada na sua relação com os dialetos de África trazidos na boca dos escravos para este arquipélago descoberto a partir de 1460 por navegadores portugueses. Hoje, a língua portuguesa é falada por 244 milhões de pessoas em todos os continentes, mas o crioulo de Cabo Verde é a sua primeira experiência plena de globalização. Um exemplo único e acabado de crioulidade que encanta, mas não chega para os cabo-verdianos se relacionarem com o mundo. Daí a fatalidade. A língua portuguesa, uma das grandes línguas globais, é para sempre a ponte do cabo-verdiano até ao outro lado. Mas esta relação fatal não é de sentido único. Porque o futuro da língua portuguesa também mora na afirmação internacional da cultura de Cabo Verde que se expressa em toda a sua potência crioula.
As celebrações dos 800 anos da língua portuguesa têm como base não a génese do idioma – momento que é aliás impossível determinar –, mas a data em que foi redigido o testamento do terceiro rei de Portugal, Dom Afonso II, 27 de Junho de 1214. É o ponto de referência mais importante para o português enquanto língua escrita. Hoje, a pátria da língua portuguesa equivale a 7% da superfície continental da Terra. Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde.
É nesta representatividade territorial e humana garantida sobretudo pelo Brasil e pelos países africanos que, acredita Alberto Carvalho, reside um “futuro bastante promissor” da língua portuguesa. Segundo o professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o futuro das línguas no contexto internacional está dependente do poder político e económico das nações que as falam. Ora, estima-se que os países que falam o português representam 4% da riqueza mundial. “São espaços linguísticos de grande potencial quer humano – porque são países muito novos onde, por isso a população vai ainda crescer muito –, e sobretudo porque são países muito ricos”, afirma Alberto Carvalho.
Portanto, são grandes centros de atração do mundo para a língua portuguesa. É só ver o interesse que a CPLP, enquanto comunidade de povos e de língua, está a despertar junto de países como a Guiné-Equatorial – cuja adesão foi recomendada esta semana pela cimeira extraordinária dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos oito que teve lugar em Maputo – mas também o Japão, Turquia, Geórgia, Marrocos, Namíbia, Peru. A procura do português cresce em cada dia nos grandes centros linguísticos do mundo. É o sexto idioma mais falado no mundo, o quinto mais usado na Internet e o terceiro mais usado nas redes sociais Facebook e Twitter. Acredita-se que em 2050 serão mais de 350 milhões os falantes da língua portuguesa, número suficiente para mantê-la no topo dos idiomas mundiais.
Apesar de admitir que este futuro está “amarrado” ao sucesso político e económico dos países lusófonos – a maioria rica em petróleo e outros recursos naturais –, Alberto Carvalho prefere acreditar que a importância do português em relação às outras línguas depende muito mais da cultura. “Uma cultura viva nos países africanos, no Brasil, em Portugal... Cultura humana, em sociedade, escrita nos livros, nas formas musicais e tantas outras que têm um futuro bastante promissor”, declara o docente universitário.
A língua portuguesa em Cabo Verde
É um dado histórico. A escola entrou em Cabo Verde com o início da colonização portuguesa. Primeiro, a escola eclesiástica durante vários séculos. A seguir, a partir de meados do século XVIII, com a política desenvolvida pelo Marquês de Pombal e, um século depois, com o liberalismo português, a escola laica instalou-se na então colónia, por diligências empreendidas pelos Deputados cabo-verdianos às Cortes, em 1845, logo concretizada pela fundação da Escola Principal da ilha Brava, em 1848, num processo que não mais sofreria interrupção.
Fruto desta escolarização, existe no país “um saber-fazer no plano do exercício da escrita administrativa ao serviço da organização do Estado”. Isso viu-se quando se deu a independência. “Cabo Verde tomou imediatamente conta das suas instituições sem problemas”, conta Alberto Carvalho. Aliás, dos mais altos dirigentes do país, após o 5 de julho de 1975, grande parte era composta por antigos quadros da administração colonial formados nas escolas do arquipélago e em Portugal.
A vida económica em Cabo Verde rege-se também por conceitos herdados da língua e cultura portuguesa, segundo Alberto Carvalho. Por exemplo, o conceito de propriedade. “Na ilha de Santo Antão, quando um animal de um proprietário invade ou destrói a horta de um vizinho, o dono da horta diz: “eu vou mandar coimar o fulano. Ou seja, eu vou recorrer à justiça institucional para punir esse fulano. Assim fala Nha Joja, mãe de Mané Quim, em “Chuva Brava”, de Manuel Lopes”. Ora, o conceito de propriedade privada não é africano. É, creio bem, um conceito difundido em Cabo Verde pela ideologia judaico-cristã, pelos judeus idos para Cabo Verde no início do século XVI”, explica o antigo docente da UL.
Outra faceta da vida pública cabo-verdiana de herança portuguesa, ou se se preferir europeia, é a competência para o grande comércio. “Esta aptidão dos cabo-verdianos para o comércio de loja com balcão, de porta aberta ao público, com uma contabilidade de “deve” e “haver”, que distingue o “apuro” do “lucro”, com um agudo sentido da honra, não é própria das culturas africanas. Se quisermos ver as coisas a frio, constatamos que, ainda hoje, na área africana sudanesa, fronteira a Cabo Verde, a maior parte do comércio de porta aberta é detida por libaneses. Repito, os cabo-verdianos detêm um saber histórico neste domínio económico-mercantil que vem muito da escola judaico-cristã introduzida no arquipélago no século XVI pelos judeus portugueses expulsos”, afirma Alberto Carvalho.
Mas não é só na organização do Estado e da economia que se manifesta a herança veiculada pela língua portuguesa. Ela vive também na cultura autóctone criada nas dez ilhas atlânticas. “Uma cultura surpreendentemente rica, acima do que seria de esperar por um desconhecedor da realidade” e que cada vez mais ganha projeção na cena internacional. E isto, embora o país seja pequeno em território, número de habitantes e poder económico, “é como agora se diz uma mais-valia”, sentencia o professor catedrático. Para o país-arquipélago e para a língua portuguesa, já que estão umbilicalmente ligados. Para sempre.
A literatura cabo-verdiana, salvo as intencionadas exceções, é escrita na língua portuguesa, a despeito da importância do idioma materno dos cabo-verdianos, o crioulo. O crioulo, “embora seja uma língua plenamente amadurecida do ponto de vista histórico, filológico, gramatical, lexical, tem um raio de intervenção bem determinado, enraizado nas ilhas e, claro, nos muito lugares de emigração, por vezes com um número impressionante de falantes. Mas essa realidade empírica, de escopo sobretudo popular, não se traduz num equivalente peso sócio-político e cultural”, lamenta Alberto Carvalho. “Nos lugares de emigração, ao povo obreiro falta tempo, motivação e formação ativista para difundir a língua crioula, a não ser, bem entendido, na música e no facto notável da sua consideração de língua de minoria, nos Estados Unidos da América”.
“O cabo-verdiano que escrever em crioulo tende a cingir as suas ideias ao contexto das ilhas”, explica o docente universitário. E por ser assim, “o horizonte de leitores tende a ser o das ilhas e das comunidades na diáspora.
Mas, à luz do que já referi, não é de crer que os emigrantes em luta pela vida sintam grande motivação para a leitura literária. Não é novidade. Basta ler os ensaios de António Aurélio Gonçalves e de Baltasar Lopes. A língua crioula tende a representar as realidades autóctones, a exprimir as vivências da existência insular, a não se abrir para o vasto mundo. O vasto mundo não sabe crioulo, logo, não pode ler as obras em língua cabo-verdiana”, alega Alberto Carvalho.
Mas “se sabe cabo-verdiano, tenderá a ler as narrativas crioulas como coisas de um mundo tendencialmente exótico. Fatal e infelizmente. Esta questão de sociologia da leitura literária prende-se afinal com a linguagem, com aquilo que, em teoria, se define por mediador literário e, depois, pela capacidade de irradiação desse mediador”, acrescenta o professor catedrático. Assim, na medida em que a língua portuguesa é uma das cinco grandes línguas de cultura no mundo, “a escrita cabo-verdiana mediatizada pelo português dispõe de um vasto horizonte de leitura, ou de um aparato enorme de tradução editorial para outras línguas de grande difusão. Os autores sabem ou pressentem isso, não adianta iludir a questão”, responde o especialista em literatura cabo-verdiana.
Os escritores cabo-verdianos têm usado o português como mediador literário, mas para veicularem quase exclusivamente representações do universo crioulo. Por outras palavras, o homem crioulo forjou a língua crioula, ao mesmo tempo que a língua crioula o criou a ele e ao seu mundo social e humano, diria Gabriel Mariano. Mas ao mesmo tempo viveram, ao longo da história, paredes-meias com o português. Daí esta particularidade de os escritores cabo-verdianos poderem escrever a sua crioulidade genuína em português. Sem pensarem nisso, estes escritores acabam por moldar a língua portuguesa à expressão da sua identidade, da identidade de uma Nação.
O escritor Manuel Lopes, exemplifica Alberto Carvalho, “viveu desde cerca dos 12 até aos 16 anos em Coimbra, quando regressou a Cabo Verde. Depois, em idade adulta, entrou para a empresa de telecomunicações internacionais que o deslocou para os Açores, dos Açores para Carcavelos, de Carcavelos para Grândola e de Grândola para Lisboa já na velhice. No entanto, toda a sua obra, escrita em português, mergulha as raízes em Cabo Verde, com a ressalva de uns quantos poemas de temática lisboeta, para desenfastiar, disse ele”. Mas não é só o ambiente crioulo que os escritores cabo-verdianos transportam para dentro das suas obras, frisa o professor catedrático aposentado da UL.
“Vivam onde vivam, incorporam na sua escrita não apenas os conteúdos cabo-verdianos mas também expressões e a linguagem crioula no sentido de criar um efeito de autenticação popular, de enraizamento, de coloquialidade, de espontaneidade, de familiaridade. É uma espécie de selo que se vai colocando periodicamente”, explica Alberto Carvalho.
E aponta exemplos. “Baltasar Lopes, com o saber de grande linguista filólogo, acaba por conferir ao português uma surpreendente tonalidade crioula. Ainda na narrativa, diferentes dele, por exemplo, Manuel Lopes, Germano Almeida, Nuno de Miranda, Gabriel Mariano, introduzem frases, expressões e formas de pensamento que são outras tantas manifestações de genuinidade crioula.
Mesmo que se revelem de difícil compreensão, tais expressões preservam sentido literário. Um estrangeiro que não entenda o sentido exato, não precisa de o entender, visto que o extrai a partir do contexto. Daí a inutilidade dos glossários”, declara o investigador luso para quem isto é “muito elegante e muito produtivo do ponto de vista dos efeitos literários. Dá um toque de cor local das falas, dos ambientes e dos personagens”.
A convivência das duas línguas no universo literário cabo-verdiano é tão cordial que não há memória de atritos. Pelo contrário, a relação “é pacífica na medida em que são duas línguas muito próximas. O crioulo é uma língua neo-latina, derivada do português, como o português deriva do latim popular. O léxico sofreu transformações para se afeiçoar às realidades crioulas, mas os movimentos articulatórios na produção da fala são idênticos. Devido a esta familiaridade, também se torna familiar o vaivém entre uma e outra língua.
Para um leitor formado na língua, formas de referência que surgem nos textos em língua portuguesa, ou a maneira de pensar ou dizer – como quando Baltasar Lopes fala em “meninência” – revelam um fundo de diacronismo, ou de sincronização, entre o português e o crioulo também eles muito interessantes do ponto de vista dos efeitos literários e, ao mesmo tempo, da naturalização do português linguagem literária”, analisa Alberto Carvalho.
Em contraste com a área literária, a proporção de música cabo-verdiana cantada em português é no entanto residual. A arte musical não assenta na racionalidade, na lógica, na causalidade, nas mensagens dirigidas ao entendimento. A arte musical é por natureza universal, um significante que pode viver vazio de significado. Esse ícone de nome Cesária Évora sempre cantou em crioulo – salvo uma ou duas canções em português e castelhano – e terá sido por isso que conquistou fãs em todo o mundo. Da França aos Estados Unidos, da Rússia ao Japão, da Alemanha à Austrália. Assim como fazem, agora, Mayra Andrade, Nancy Vieira, Gabriela Mendes, também cantando na sua língua materna. Quem fez o contrário, como Fernando Quejas, que viveu e fez carreira em Portugal, cantando na língua de Camões, não se terá livrado da condenação dos cabo-verdianos, sobretudo dos defensores da suposta pureza da música de Cabo Verde.
Poucos foram aqueles ao longo dos tempos que se atreveram a repetir o gesto. Os que ousaram escrever e cantar música cabo-verdiana fizeram-no sempre num contexto específico. B. Leza, um dos maiores compositores de Cabo Verde, escreveu “Beijo de Saudade”, uma declaração de amor por Cabo Verde na língua portuguesa numa conversa com o Tejo, o rio português.
Mas a partir da diáspora, a música de Cabo Verde conhece nos últimos anos um fenómeno novo. Letristas e cantores de kizomba, cabo-verdianos nascidos ou criados no estrangeiro, mesmo em países não lusófonos – como Mika Mendes (França), Johnny Ramos, Denis Graça, Gil Semedo (Holanda) –incluem cada vez mais o português no seu repertório. Uma estratégia montada para agradar e aumentar a falange de fãs não-falantes da língua cabo-verdiana residentes, por exemplo, em Portugal, Angola, Brasil. Fãs que muitas vezes buscam na internet a tradução para o português das letras das músicas que esses cantores cantam no idioma de Cabo Verde, ansiando compreender as histórias que contam.
Se esta moda se vai generalizar, chegando aos géneros tradicionais da música de Cabo Verde, como morna, funaná, batuco, a ver vamos. A tendência de se expressar em português já está, no entanto, a chegar ao teatro cabo-verdiano.
O Juventude em Marcha – o mais antigo grupo de teatro no ativo no país – só atua para os conterrâneos quando sai para o estrangeiro, estejam eles nos Estados Unidos da América, Luxemburgo ou Portugal porque as suas peças são todas ditas em crioulo. As trupes que escolhem montar peças em português – como o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, o Solaris, o Sikinada – já conseguem convites para festivais que acontecem, por exemplo, em Portugal, no Brasil, em Angola, Moçambique.
A convivência do cabo-verdiano com a língua portuguesa é, por isso, fatal na sua ânsia de comunicar com o mundo, considera Alberto Carvalho, “Não há por onde fugir, e felizmente que assim é porque, além da pertença histórica, o português é para o cabo-verdiano um guarda-chuva excelente”. Em outras palavras, é a janela através da qual o mundo olha e vê Cabo Verde.
Crioulo, o primeiro ato de globalização protagonizado pelos portugueses Num outro sentido, também se dirá que a língua portuguesa vive através do crioulo. Se o idioma materno dos cabo-verdianos – o crioulo – tem filiação genética, lexical, na língua portuguesa em andanças pelo mundo, por esse facto o crioulo língua é um elemento de património inventivo e fator de união entre povos e culturas da Europa, Américas, África, Ásia e Oceânia.
Como todos os descendentes, é diferente das matrizes, tanto europeia quanto africana, mas também herda muitas características dos progenitores. “Isso também permite, como sublinhou Baltasar Lopes, uma outra forma de vai-vem. O léxico, a fonologia e a semântica do português dos séculos XV a XVII podem ajudar a esclarecer as característica do crioulo, ao mesmo tempo que o crioulo, com as suas formas atuais, pode elucidar as particularidades da história da língua portuguesa”, elucida Alberto Carvalho.
Mas a língua materna de Cesária Évora, Manuel Lopes, B. Leza, Jorge Barbosa, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ano Nobo, Germano Almeida, Betú, Ildo Lobo, Arménio Vieira, também tomou emprestada formas frásicas e léxico aos dialetos falados pelos milhares de escravos, das mais diversas origens – yorubas, timene, ashanti e tantos outros – desterrados para Cabo Verde. No seu livro “Africanismos na Língua Cabo-Verdiana”, o linguista francês Nicolas Quint identifica cerca de 80 palavras, o que equivale a 3% do léxico da língua cabo-verdiana. Como “djobi”, de origem mandinga, “funko”, de origem timene, da Serra Leoa.
A língua cabo-verdiana é, desta forma, o primeiro resultado da experiência de globalização iniciada pelos portugueses na época dos Descobrimentos, antes de chegarem ao Brasil e à India. Num encontro inicialmente forçado pelas circunstâncias históricas e pela insularidade, portugueses e africanos realizaram em Cabo Verde mais do que um simples intercâmbio de civilizações. Criaram uma língua nova e uma sociedade própria, principais fatores de definição da cultura local, também ela nova.
O crioulo é o mundo que o mulato criou, como diria o Teixeira de Sousa – o escritor que mais soube descrever essa síntese de culturas que surge com o primeiro cabo-verdiano que nasce nas ilhas e se molda à cultura e língua dominantes (o português) para dar lugar a uma língua própria como identidade de uma Nação.
Bilinguismo: vantagem ou desvantagem
Os cabo-verdianos são por isso, na prática, historicamente bilingues. Dispõem do português, a língua oficial e de âmbito mundial, e o crioulo, o idioma materno em que é feito o seu quotidiano. Esta particularidade, afirma Alberto Carvalho, “coloca-os numa posição de vanguarda. Porque o futuro, dizem os mestres linguistas Celso Cunha e Lindley Cintra, está no bilinguismo ou no trilinguismo. Portanto, os cabo-verdianos estão muito bem situados” para encarar os anos vindouros, acredita Alberto Carvalho.
Esta “riqueza” dos cabo-verdianos “pode, se analisada do ponto de vista não político, não partidário e não ideológico, ajudar a encontrar caminhos para outros países de língua portuguesa que ainda têm problemas de integração linguística para resolver. Casos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau”, afirma o docente português que durante décadas ensinou literaturas africanas de língua portuguesa na Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa. Esses três países têm, cada um, mais de dúzia e meia de línguas de significativa difusão e “vão ter que decidir qual ou quais delas vão subsistir. Não podem subsistir todas. Vai ser doloroso para aqueles que vão ser sacrificados. Ora, o cabo-verdiano já poupou essa dor a si próprio”, diz o professor Carvalho.
A “dupla” personalidade, ou seja, o perfil próprio de cada uma das línguas na construção da racionalidade, visto que as línguas constroem o pensamento antes de o comunicarem, pode no entanto dificultar a aprendizagem da língua portuguesa, em face da língua vernácula, criando embaraços tanto no discurso escrito como oral. Não são poucos os casos de cabo-verdianos, inclusive quadros com formação superior - licenciados, mestres, doutores, jornalistas, médicos, engenheiros - que ainda falam o português com a lógica do crioulo.
Pura e simples tradução literal, ou seja, pensam em crioulo e passam para o português. Daí a grande dificuldade do cabo-verdiano, quando se expressa em português, por exemplo com as concordâncias - feminino, masculino, singular, plural.
Muitas palavras do crioulo são iguais às da língua portuguesa, ou quase, como casa, homi, mudjer, caminho, sodade. Mas a gramática do idioma cabo-verdiano, escreve também o linguista Nicolas Quint no seu livro “Africanismos na Língua Cabo-Verdiana”, é sobretudo de influência africana, nomeadamente a morfologia dos verbos. Segundo Quint, “com a mesma flexão conjuga-se tempos verbais diferentes. Se traduzirmos para o português isso soa muito estranho”.
Quer isto dizer que “a conjugação na língua cabo-verdiana rege-se pelo aspeto e não pelo tempo. É uma mudança muito radical em relação às línguas românicas como o português”, afirma o linguista. Ou seja, “o que engana os cabo-verdianos é o facto de os pontos lexicais serem comuns”. “Mas são dois esquemas mentais diferentes”, assevera Nicolas Quint. Como resolver o problema? “A conscientização da população cabo-verdiana de que o crioulo não é o português ajudaria muito a aprender a língua portuguesa”, sugere.
A língua portuguesa celebra agora oito séculos de vida. E o crioulo de Cabo Verde, o primeiro filho que gerou nos trópicos, na confluência de rotas, gentes e culturas já conta mais de 500 anos. Sim, porque antes mesmo do português chegar à América ou à Ásia criou uma língua nova forjada na sua relação com os dialetos de África trazidos na boca dos escravos para este arquipélago descoberto a partir de 1460 por navegadores portugueses. Hoje, a língua portuguesa é falada por 244 milhões de pessoas em todos os continentes, mas o crioulo de Cabo Verde é a sua primeira experiência plena de globalização. Um exemplo único e acabado de crioulidade que encanta, mas não chega para os cabo-verdianos se relacionarem com o mundo. Daí a fatalidade. A língua portuguesa, uma das grandes línguas globais, é para sempre a ponte do cabo-verdiano até ao outro lado. Mas esta relação fatal não é de sentido único. Porque o futuro da língua portuguesa também mora na afirmação internacional da cultura de Cabo Verde que se expressa em toda a sua potência crioula.
As celebrações dos 800 anos da língua portuguesa têm como base não a génese do idioma – momento que é aliás impossível determinar –, mas a data em que foi redigido o testamento do terceiro rei de Portugal, Dom Afonso II, 27 de Junho de 1214. É o ponto de referência mais importante para o português enquanto língua escrita. Hoje, a pátria da língua portuguesa equivale a 7% da superfície continental da Terra. Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde.
É nesta representatividade territorial e humana garantida sobretudo pelo Brasil e pelos países africanos que, acredita Alberto Carvalho, reside um “futuro bastante promissor” da língua portuguesa. Segundo o professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o futuro das línguas no contexto internacional está dependente do poder político e económico das nações que as falam. Ora, estima-se que os países que falam o português representam 4% da riqueza mundial. “São espaços linguísticos de grande potencial quer humano – porque são países muito novos onde, por isso a população vai ainda crescer muito –, e sobretudo porque são países muito ricos”, afirma Alberto Carvalho.
Portanto, são grandes centros de atração do mundo para a língua portuguesa. É só ver o interesse que a CPLP, enquanto comunidade de povos e de língua, está a despertar junto de países como a Guiné-Equatorial – cuja adesão foi recomendada esta semana pela cimeira extraordinária dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos oito que teve lugar em Maputo – mas também o Japão, Turquia, Geórgia, Marrocos, Namíbia, Peru. A procura do português cresce em cada dia nos grandes centros linguísticos do mundo. É o sexto idioma mais falado no mundo, o quinto mais usado na Internet e o terceiro mais usado nas redes sociais Facebook e Twitter. Acredita-se que em 2050 serão mais de 350 milhões os falantes da língua portuguesa, número suficiente para mantê-la no topo dos idiomas mundiais.
Apesar de admitir que este futuro está “amarrado” ao sucesso político e económico dos países lusófonos – a maioria rica em petróleo e outros recursos naturais –, Alberto Carvalho prefere acreditar que a importância do português em relação às outras línguas depende muito mais da cultura. “Uma cultura viva nos países africanos, no Brasil, em Portugal... Cultura humana, em sociedade, escrita nos livros, nas formas musicais e tantas outras que têm um futuro bastante promissor”, declara o docente universitário.
A língua portuguesa em Cabo Verde
É um dado histórico. A escola entrou em Cabo Verde com o início da colonização portuguesa. Primeiro, a escola eclesiástica durante vários séculos. A seguir, a partir de meados do século XVIII, com a política desenvolvida pelo Marquês de Pombal e, um século depois, com o liberalismo português, a escola laica instalou-se na então colónia, por diligências empreendidas pelos Deputados cabo-verdianos às Cortes, em 1845, logo concretizada pela fundação da Escola Principal da ilha Brava, em 1848, num processo que não mais sofreria interrupção.
Fruto desta escolarização, existe no país “um saber-fazer no plano do exercício da escrita administrativa ao serviço da organização do Estado”. Isso viu-se quando se deu a independência. “Cabo Verde tomou imediatamente conta das suas instituições sem problemas”, conta Alberto Carvalho. Aliás, dos mais altos dirigentes do país, após o 5 de julho de 1975, grande parte era composta por antigos quadros da administração colonial formados nas escolas do arquipélago e em Portugal.
A vida económica em Cabo Verde rege-se também por conceitos herdados da língua e cultura portuguesa, segundo Alberto Carvalho. Por exemplo, o conceito de propriedade. “Na ilha de Santo Antão, quando um animal de um proprietário invade ou destrói a horta de um vizinho, o dono da horta diz: “eu vou mandar coimar o fulano. Ou seja, eu vou recorrer à justiça institucional para punir esse fulano. Assim fala Nha Joja, mãe de Mané Quim, em “Chuva Brava”, de Manuel Lopes”. Ora, o conceito de propriedade privada não é africano. É, creio bem, um conceito difundido em Cabo Verde pela ideologia judaico-cristã, pelos judeus idos para Cabo Verde no início do século XVI”, explica o antigo docente da UL.
Outra faceta da vida pública cabo-verdiana de herança portuguesa, ou se se preferir europeia, é a competência para o grande comércio. “Esta aptidão dos cabo-verdianos para o comércio de loja com balcão, de porta aberta ao público, com uma contabilidade de “deve” e “haver”, que distingue o “apuro” do “lucro”, com um agudo sentido da honra, não é própria das culturas africanas. Se quisermos ver as coisas a frio, constatamos que, ainda hoje, na área africana sudanesa, fronteira a Cabo Verde, a maior parte do comércio de porta aberta é detida por libaneses. Repito, os cabo-verdianos detêm um saber histórico neste domínio económico-mercantil que vem muito da escola judaico-cristã introduzida no arquipélago no século XVI pelos judeus portugueses expulsos”, afirma Alberto Carvalho.
Mas não é só na organização do Estado e da economia que se manifesta a herança veiculada pela língua portuguesa. Ela vive também na cultura autóctone criada nas dez ilhas atlânticas. “Uma cultura surpreendentemente rica, acima do que seria de esperar por um desconhecedor da realidade” e que cada vez mais ganha projeção na cena internacional. E isto, embora o país seja pequeno em território, número de habitantes e poder económico, “é como agora se diz uma mais-valia”, sentencia o professor catedrático. Para o país-arquipélago e para a língua portuguesa, já que estão umbilicalmente ligados. Para sempre.
A literatura cabo-verdiana, salvo as intencionadas exceções, é escrita na língua portuguesa, a despeito da importância do idioma materno dos cabo-verdianos, o crioulo. O crioulo, “embora seja uma língua plenamente amadurecida do ponto de vista histórico, filológico, gramatical, lexical, tem um raio de intervenção bem determinado, enraizado nas ilhas e, claro, nos muito lugares de emigração, por vezes com um número impressionante de falantes. Mas essa realidade empírica, de escopo sobretudo popular, não se traduz num equivalente peso sócio-político e cultural”, lamenta Alberto Carvalho. “Nos lugares de emigração, ao povo obreiro falta tempo, motivação e formação ativista para difundir a língua crioula, a não ser, bem entendido, na música e no facto notável da sua consideração de língua de minoria, nos Estados Unidos da América”.
“O cabo-verdiano que escrever em crioulo tende a cingir as suas ideias ao contexto das ilhas”, explica o docente universitário. E por ser assim, “o horizonte de leitores tende a ser o das ilhas e das comunidades na diáspora.
Mas, à luz do que já referi, não é de crer que os emigrantes em luta pela vida sintam grande motivação para a leitura literária. Não é novidade. Basta ler os ensaios de António Aurélio Gonçalves e de Baltasar Lopes. A língua crioula tende a representar as realidades autóctones, a exprimir as vivências da existência insular, a não se abrir para o vasto mundo. O vasto mundo não sabe crioulo, logo, não pode ler as obras em língua cabo-verdiana”, alega Alberto Carvalho.
Mas “se sabe cabo-verdiano, tenderá a ler as narrativas crioulas como coisas de um mundo tendencialmente exótico. Fatal e infelizmente. Esta questão de sociologia da leitura literária prende-se afinal com a linguagem, com aquilo que, em teoria, se define por mediador literário e, depois, pela capacidade de irradiação desse mediador”, acrescenta o professor catedrático. Assim, na medida em que a língua portuguesa é uma das cinco grandes línguas de cultura no mundo, “a escrita cabo-verdiana mediatizada pelo português dispõe de um vasto horizonte de leitura, ou de um aparato enorme de tradução editorial para outras línguas de grande difusão. Os autores sabem ou pressentem isso, não adianta iludir a questão”, responde o especialista em literatura cabo-verdiana.
Os escritores cabo-verdianos têm usado o português como mediador literário, mas para veicularem quase exclusivamente representações do universo crioulo. Por outras palavras, o homem crioulo forjou a língua crioula, ao mesmo tempo que a língua crioula o criou a ele e ao seu mundo social e humano, diria Gabriel Mariano. Mas ao mesmo tempo viveram, ao longo da história, paredes-meias com o português. Daí esta particularidade de os escritores cabo-verdianos poderem escrever a sua crioulidade genuína em português. Sem pensarem nisso, estes escritores acabam por moldar a língua portuguesa à expressão da sua identidade, da identidade de uma Nação.
O escritor Manuel Lopes, exemplifica Alberto Carvalho, “viveu desde cerca dos 12 até aos 16 anos em Coimbra, quando regressou a Cabo Verde. Depois, em idade adulta, entrou para a empresa de telecomunicações internacionais que o deslocou para os Açores, dos Açores para Carcavelos, de Carcavelos para Grândola e de Grândola para Lisboa já na velhice. No entanto, toda a sua obra, escrita em português, mergulha as raízes em Cabo Verde, com a ressalva de uns quantos poemas de temática lisboeta, para desenfastiar, disse ele”. Mas não é só o ambiente crioulo que os escritores cabo-verdianos transportam para dentro das suas obras, frisa o professor catedrático aposentado da UL.
“Vivam onde vivam, incorporam na sua escrita não apenas os conteúdos cabo-verdianos mas também expressões e a linguagem crioula no sentido de criar um efeito de autenticação popular, de enraizamento, de coloquialidade, de espontaneidade, de familiaridade. É uma espécie de selo que se vai colocando periodicamente”, explica Alberto Carvalho.
E aponta exemplos. “Baltasar Lopes, com o saber de grande linguista filólogo, acaba por conferir ao português uma surpreendente tonalidade crioula. Ainda na narrativa, diferentes dele, por exemplo, Manuel Lopes, Germano Almeida, Nuno de Miranda, Gabriel Mariano, introduzem frases, expressões e formas de pensamento que são outras tantas manifestações de genuinidade crioula.
Mesmo que se revelem de difícil compreensão, tais expressões preservam sentido literário. Um estrangeiro que não entenda o sentido exato, não precisa de o entender, visto que o extrai a partir do contexto. Daí a inutilidade dos glossários”, declara o investigador luso para quem isto é “muito elegante e muito produtivo do ponto de vista dos efeitos literários. Dá um toque de cor local das falas, dos ambientes e dos personagens”.
A convivência das duas línguas no universo literário cabo-verdiano é tão cordial que não há memória de atritos. Pelo contrário, a relação “é pacífica na medida em que são duas línguas muito próximas. O crioulo é uma língua neo-latina, derivada do português, como o português deriva do latim popular. O léxico sofreu transformações para se afeiçoar às realidades crioulas, mas os movimentos articulatórios na produção da fala são idênticos. Devido a esta familiaridade, também se torna familiar o vaivém entre uma e outra língua.
Para um leitor formado na língua, formas de referência que surgem nos textos em língua portuguesa, ou a maneira de pensar ou dizer – como quando Baltasar Lopes fala em “meninência” – revelam um fundo de diacronismo, ou de sincronização, entre o português e o crioulo também eles muito interessantes do ponto de vista dos efeitos literários e, ao mesmo tempo, da naturalização do português linguagem literária”, analisa Alberto Carvalho.
Em contraste com a área literária, a proporção de música cabo-verdiana cantada em português é no entanto residual. A arte musical não assenta na racionalidade, na lógica, na causalidade, nas mensagens dirigidas ao entendimento. A arte musical é por natureza universal, um significante que pode viver vazio de significado. Esse ícone de nome Cesária Évora sempre cantou em crioulo – salvo uma ou duas canções em português e castelhano – e terá sido por isso que conquistou fãs em todo o mundo. Da França aos Estados Unidos, da Rússia ao Japão, da Alemanha à Austrália. Assim como fazem, agora, Mayra Andrade, Nancy Vieira, Gabriela Mendes, também cantando na sua língua materna. Quem fez o contrário, como Fernando Quejas, que viveu e fez carreira em Portugal, cantando na língua de Camões, não se terá livrado da condenação dos cabo-verdianos, sobretudo dos defensores da suposta pureza da música de Cabo Verde.
Poucos foram aqueles ao longo dos tempos que se atreveram a repetir o gesto. Os que ousaram escrever e cantar música cabo-verdiana fizeram-no sempre num contexto específico. B. Leza, um dos maiores compositores de Cabo Verde, escreveu “Beijo de Saudade”, uma declaração de amor por Cabo Verde na língua portuguesa numa conversa com o Tejo, o rio português.
Mas a partir da diáspora, a música de Cabo Verde conhece nos últimos anos um fenómeno novo. Letristas e cantores de kizomba, cabo-verdianos nascidos ou criados no estrangeiro, mesmo em países não lusófonos – como Mika Mendes (França), Johnny Ramos, Denis Graça, Gil Semedo (Holanda) –incluem cada vez mais o português no seu repertório. Uma estratégia montada para agradar e aumentar a falange de fãs não-falantes da língua cabo-verdiana residentes, por exemplo, em Portugal, Angola, Brasil. Fãs que muitas vezes buscam na internet a tradução para o português das letras das músicas que esses cantores cantam no idioma de Cabo Verde, ansiando compreender as histórias que contam.
Se esta moda se vai generalizar, chegando aos géneros tradicionais da música de Cabo Verde, como morna, funaná, batuco, a ver vamos. A tendência de se expressar em português já está, no entanto, a chegar ao teatro cabo-verdiano.
O Juventude em Marcha – o mais antigo grupo de teatro no ativo no país – só atua para os conterrâneos quando sai para o estrangeiro, estejam eles nos Estados Unidos da América, Luxemburgo ou Portugal porque as suas peças são todas ditas em crioulo. As trupes que escolhem montar peças em português – como o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, o Solaris, o Sikinada – já conseguem convites para festivais que acontecem, por exemplo, em Portugal, no Brasil, em Angola, Moçambique.
A convivência do cabo-verdiano com a língua portuguesa é, por isso, fatal na sua ânsia de comunicar com o mundo, considera Alberto Carvalho, “Não há por onde fugir, e felizmente que assim é porque, além da pertença histórica, o português é para o cabo-verdiano um guarda-chuva excelente”. Em outras palavras, é a janela através da qual o mundo olha e vê Cabo Verde.
Crioulo, o primeiro ato de globalização protagonizado pelos portugueses Num outro sentido, também se dirá que a língua portuguesa vive através do crioulo. Se o idioma materno dos cabo-verdianos – o crioulo – tem filiação genética, lexical, na língua portuguesa em andanças pelo mundo, por esse facto o crioulo língua é um elemento de património inventivo e fator de união entre povos e culturas da Europa, Américas, África, Ásia e Oceânia.
Como todos os descendentes, é diferente das matrizes, tanto europeia quanto africana, mas também herda muitas características dos progenitores. “Isso também permite, como sublinhou Baltasar Lopes, uma outra forma de vai-vem. O léxico, a fonologia e a semântica do português dos séculos XV a XVII podem ajudar a esclarecer as característica do crioulo, ao mesmo tempo que o crioulo, com as suas formas atuais, pode elucidar as particularidades da história da língua portuguesa”, elucida Alberto Carvalho.
Mas a língua materna de Cesária Évora, Manuel Lopes, B. Leza, Jorge Barbosa, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ano Nobo, Germano Almeida, Betú, Ildo Lobo, Arménio Vieira, também tomou emprestada formas frásicas e léxico aos dialetos falados pelos milhares de escravos, das mais diversas origens – yorubas, timene, ashanti e tantos outros – desterrados para Cabo Verde. No seu livro “Africanismos na Língua Cabo-Verdiana”, o linguista francês Nicolas Quint identifica cerca de 80 palavras, o que equivale a 3% do léxico da língua cabo-verdiana. Como “djobi”, de origem mandinga, “funko”, de origem timene, da Serra Leoa.
A língua cabo-verdiana é, desta forma, o primeiro resultado da experiência de globalização iniciada pelos portugueses na época dos Descobrimentos, antes de chegarem ao Brasil e à India. Num encontro inicialmente forçado pelas circunstâncias históricas e pela insularidade, portugueses e africanos realizaram em Cabo Verde mais do que um simples intercâmbio de civilizações. Criaram uma língua nova e uma sociedade própria, principais fatores de definição da cultura local, também ela nova.
O crioulo é o mundo que o mulato criou, como diria o Teixeira de Sousa – o escritor que mais soube descrever essa síntese de culturas que surge com o primeiro cabo-verdiano que nasce nas ilhas e se molda à cultura e língua dominantes (o português) para dar lugar a uma língua própria como identidade de uma Nação.
Bilinguismo: vantagem ou desvantagem
Os cabo-verdianos são por isso, na prática, historicamente bilingues. Dispõem do português, a língua oficial e de âmbito mundial, e o crioulo, o idioma materno em que é feito o seu quotidiano. Esta particularidade, afirma Alberto Carvalho, “coloca-os numa posição de vanguarda. Porque o futuro, dizem os mestres linguistas Celso Cunha e Lindley Cintra, está no bilinguismo ou no trilinguismo. Portanto, os cabo-verdianos estão muito bem situados” para encarar os anos vindouros, acredita Alberto Carvalho.
Esta “riqueza” dos cabo-verdianos “pode, se analisada do ponto de vista não político, não partidário e não ideológico, ajudar a encontrar caminhos para outros países de língua portuguesa que ainda têm problemas de integração linguística para resolver. Casos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau”, afirma o docente português que durante décadas ensinou literaturas africanas de língua portuguesa na Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa. Esses três países têm, cada um, mais de dúzia e meia de línguas de significativa difusão e “vão ter que decidir qual ou quais delas vão subsistir. Não podem subsistir todas. Vai ser doloroso para aqueles que vão ser sacrificados. Ora, o cabo-verdiano já poupou essa dor a si próprio”, diz o professor Carvalho.
A “dupla” personalidade, ou seja, o perfil próprio de cada uma das línguas na construção da racionalidade, visto que as línguas constroem o pensamento antes de o comunicarem, pode no entanto dificultar a aprendizagem da língua portuguesa, em face da língua vernácula, criando embaraços tanto no discurso escrito como oral. Não são poucos os casos de cabo-verdianos, inclusive quadros com formação superior - licenciados, mestres, doutores, jornalistas, médicos, engenheiros - que ainda falam o português com a lógica do crioulo.
Pura e simples tradução literal, ou seja, pensam em crioulo e passam para o português. Daí a grande dificuldade do cabo-verdiano, quando se expressa em português, por exemplo com as concordâncias - feminino, masculino, singular, plural.
Muitas palavras do crioulo são iguais às da língua portuguesa, ou quase, como casa, homi, mudjer, caminho, sodade. Mas a gramática do idioma cabo-verdiano, escreve também o linguista Nicolas Quint no seu livro “Africanismos na Língua Cabo-Verdiana”, é sobretudo de influência africana, nomeadamente a morfologia dos verbos. Segundo Quint, “com a mesma flexão conjuga-se tempos verbais diferentes. Se traduzirmos para o português isso soa muito estranho”.
Quer isto dizer que “a conjugação na língua cabo-verdiana rege-se pelo aspeto e não pelo tempo. É uma mudança muito radical em relação às línguas românicas como o português”, afirma o linguista. Ou seja, “o que engana os cabo-verdianos é o facto de os pontos lexicais serem comuns”. “Mas são dois esquemas mentais diferentes”, assevera Nicolas Quint. Como resolver o problema? “A conscientização da população cabo-verdiana de que o crioulo não é o português ajudaria muito a aprender a língua portuguesa”, sugere.
Teresa Sofia Fortes