Revista Volta ao Mundo destaca “Cabo Verde: nas terras do Calor”
A reportagem intitulada "Cabo Verde: nas Terras so Calor", assinada pela jornalista Carla Macedo, com fotos de João Viegas, gira à volta de São Vicente e do Carnaval da ilha, que destacam como "o melhor de Cabo Verde".
O site da Revista Volta ao Mundo lançou ontem uma extensa reportagem onde destaca o arquipélago, especialmente os encantos de São Vicente.
A reportagem intitulada “Cabo Verde: nas Terras so Calor”, assinada pela jornalista Carla Macedo, com fotos de João Viegas, gira à volta de São Vicente e do Carnaval da ilha, que destacam como “o melhor de Cabo Verde”.
A jornalista diz ainda que há “muito para ver e viver” em São Vicente, para além do Carnaval, numa ilha que “ainda não descobriu a sua vocação turística”.
Cesária Évora, Germano Almeida e Laginha são algumas das personagems desta reportagem
Confira a reportagem em baixo:
Cabo Verde: nas Terras do Calor
São seis da madrugada e na praia da Laginha já há gente na água. O sol ainda não se levantou e não faz sequer um calor abrasador que justifique esta concentração de pessoas. Mas aqui o prazer de mergulhar no mar junta-se ao prazer do convívio. É no extremo norte da baía que muitos dos mindelenses se encontram todos os dias e se atualizam sobre os assuntos da ilha de São Vicente, mesmo antes do início do trabalho e não sem antes terem dado uma corrida ou uma caminhada na Marginal.
O sol acabará por nascer atrás dos montes vulcânicos que se levantam para lá da cidade. A tropa de nadadores encorpados e mulheres de toucas floridas sairá da água à medida que se vai levantando a luz – alguns rumam aos bancos que abrem às 08h00, outros às escolas públicas onde as aulas começam às sete da manhã. Já levam na pele o sal e a boa disposição. Do pontão, de onde assistimos à cena, não podemos deixar de pensar que assim é que se começa o dia… devia ser sempre assim.
Quando o sol nasce, a praia da Laginha transfigura-se e surge no mar um azul típico do Caribe. Estamos em Cabo Verde, bem longe dessa realidade, mas a areia branca transforma a cor da água num azul paradisíaco que encanta e que é único na ilha. Se há sítio indicado para tirar uma selfie de fazer inveja aos amigos, este é o lugar certo e durante o dia é mais do que habitual haver quem o faça. É preciso escolher o ângulo apropriado, evitando os depósitos de combustível de um lado e os contentores do porto do Mindelo do outro extremo da baía. Coloca-se a foto nas redes sociais e dois segundos depois garantem-se centenas de likes.
A Laginha que vemos hoje é o resultado de uma obra de requalificação que foi terminada em 2013. A praia recebeu um carregamento de areia branca que lhe ofereceu mais cinquenta metros de comprimento e uma largura bem mais considerável. Não é a mais selvagem das praias – ali encravada entre o porto, a estação de dessalinização e a moderna Avenida Marginal – mas cumpre na perfeição o propósito de espaço de lazer para a população. Mais do que isso, sentar-se naquela areia é quase o mesmo que entrar dentro do cenário de muitos dos grandes livros escritos em língua portuguesa, o idioma oficial do país. O livro de contos Ilhéu dos Pássaros foi publicado por Orlanda Amarílis em 1983 e deve o seu nome a uma ilhota desta baía; O Mar na Lajinha (2004) e Do Monte Cara Vê-se o Mundo (2014) são outros títulos, estes de Germano Almeida, que fazem referência ao local.
Germano Almeida é por estes dias a grande estrela da cultura cabo-verdiana. O escritor ganhou o reconhecimento internacional formal com o Prémio Pessoa atribuído em 2018, uma distinção que é a maior de todas as literárias da lusofonia. Para mais, a escrita de Germano Almeida está profundamente enraizada nesta terra. O escritor, que completa 74 anos em 2019, nasceu na ilha da Boa Vista, formou-se em Direito em Lisboa, fez a tropa em Angola, foi advogado, deputado e procurador-geral da República de Cabo Verde, viveu na cidade da Praia e reside no Mindelo. Os livros de Germano Almeida estão cheios das histórias da sua infância e das que encontrou pelo caminho enquanto advogado e depois procurador. Numa entrevista durante o Festival Literário Morabeza de 2018 (que decorreu em outubro, justamente na cidade do Mindelo), o escritor havia de dizer: «Saí da Boa Vista mas a Boa Vista nunca saiu de mim, nem quero.»
Da ilha onde passou os primeiros anos de vida recordava, nessa entrevista, ainda não existir luz elétrica, pelo que os serões eram passados na rua. O menino Germano e os amigos pagavam aos contadores de histórias que à época percorriam a ilha para lhes encherem o tempo e os sonhos. É curioso que na mesma ocasião o escritor tenha usado uma analogia numerária para explicar o segredo do seu sucesso. «Quando queremos falar com as pessoas, não vamos falar com palavras de vinte escudos, falamos como palavras de cinco tostões.» Respondia assim à constatação de ser um escritor de histórias e de personagens que parecem reais, usando a fala simples das gentes para construir as narrativas. É da ligação à realidade, das personagens que copiam a vida das ruas, dos lugares geográficos fotografáveis e dos lugares interiores reconhecíveis que se constroem os livros e a admiração do público por Germano Almeida. Ele é a reencarnação dos contadores de histórias da sua infância e os cenários dos seus livros são quase todos os cenários de Cabo Verde.
O escritor, não é de resto,a única figura internacional da cultura de Cabo Verde e tão-pouco o único habitante do Mindelo a subir ao estrelato. Cesária Évora ecoa, literalmente, nas ruas da cidade, através das portas e das janelas dos cafés mais virados para o turismo que insistem em tocar Sodade e continua, depois de ter falecido em 2011, a ser o maior símbolo da cultura da ilha.
O aeroporto de São Vicente tem o seu nome e uma estátua dourada de três metros, feita à imagem da cantora, a receber os visitantes. É com o seu espólio que se enche uma sala do Palácio do Povo, onde se podem ver capas de discos, fotografias de concertos e de digressões, vestidos e cachimbos e outros objetos de uso pessoal. Na casa onde a cantora viveu há apenas uma placa que assinala esse facto, mas os vizinhos ainda são capazes de dar dois dedos de conversa acerca da diva da música cabo-verdiana. Os mindelenses gostam de conversar sobre qualquer tema, aqui há tempo para dar atenção ao outro – o calor também não permitiria lançar a vida numa corrida. É por isso que Polo Lima muda de planos quando entramos no Quintal das Artes. Para a pintura mural que está a fazer e dispõe-se a mostrar o local que esteve abandonado até 2013 e que antes servira de esquadra e quartel.
Polo conta que foi o primeiro artista a ocupar o espaço e que hoje conta com uma companhia e escola de teatro, vários artistas plásticos e músicos. Depois de entrar no espaço, hoje cheio de adereços de teatro e de carros alegóricos do Carnaval, Polo foi buscar artistas plásticos como Maiúca, um soldador exímio, que além de estruturas para o teatro monta a bateria do Carnaval do Mindelo. Os tambores e os timbales do grupo Mindel Samba, feitos a partir de bidões, são ali guardados mas, todos os sábados, saem para o terreiro do Quintal das Artes para ensaiar até aos dias de Carnaval.
Leila é outra das artistas residente. Ela é costureira, especialista em trajes para o desfile do Carnaval e, sobretudo, de trajes de Mandinga, uma figura que recupera o passado continental dos habitantes da ilha – os Mandingas pintam a pele de preto, envergam fatos de palha como se fossem guerreiros africanos e desfilam aos domingos, no mês que precede o Carnaval, pelas rua do Mindelo.
Polo Lima interrompe o que faz e leva-nos pela cidade. O Mindelo está mesmo a ponto de mudar, com o aparecimento de novos hotéis, restaurantes e lojas de design africano, mas ainda há espaço para as típicas tascas, os barbeiros de navalha, as vendedoras de peixe e de fruta na rua e as casas de pasto como a Picapau. O letreiro à porta ostenta o ano de 1974, data em que o Sr. Lima (pai de Polo Lima) abriu o restaurante depois de ter trabalhado em Lisboa, Londres, São Tomé e Angola. Aos 82 anos ainda é ele quem dirige o restaurante, tanto na sala como na cozinha, e afirma que este «foi o primeiro restaurante do Mindelo. Continuo aberto porque junto a qualidade ao preço mais baixo do que os meus colegas», afirma. A casa está repleta de recados plasmados nas paredes que, em várias línguas, afinam pela mesma bitola de elogios à lagosta e à cachupa.
A caminho do Picapau passamos pelo mercado do peixe, mesmo em frente ao Quintal das Artes, onde todos os dias os pescadores descarregam atuns, bonitos, bicas, albacoras e charrocos em grande quantidade, que ali mesmo é arranjado por homens e mulheres a pedido. Há uma autêntica linha de montagem de amanhar o peixe e o povo junta-se, muitas vezes, apenas para ver este espetáculo diário. Logo ali ao lado, vemos a Torre de Belém do Mindelo, réplica da de Lisboa, que alberga hoje o Museu do Mar e que antes fora a capitania do porto. Mais adiante na Avenida Marginal, conhecida pelas gentes como a rua da Praia, passaremos pela Casa da Morna, também irmã da da capital portuguesa, onde Tito Paris é proprietário e artista pontual, a par de outros músicos e cantores locais. Nesta fileira estão algumas das melhores casas civis de arquitetura colonial, com as suas grandes janelas viradas ao mar e os varandins de sacada no primeiro andar, enquanto o rés-do-chão ostenta amplas portas para o comércio.
Ao estado pertencem também outros dos edifícios mais bonitos e bem conservados – o já falado Palácio do Povo, levantado no topo da rua central do Mindelo com uma clara vocação para albergar os órgãos de poder (na verdade foi construído num período em que se falava da transferência da capital administrativa da colónia portuguesa para esta cidade, no início do século xx); os Paços do Concelho onde continua a operar a Câmara Municipal; o Centro Cultural do Mindelo, que mantém intacta a traça da Alfândega que aqui funcionava; o Liceu Velho, que fez desta terra, durante anos, o centro cultural do arquipélago; ou a Casa do Senador Vera Cruz, uma típica casa colonial que hoje é habitada pelo Centro Nacional de Artesanato e Design.
À medida que nos afastamos do centro da cidade, o passado rico e o presente em desenvolvimento esbatem-se e a pobreza torna-se mais evidente. Mas mesmo nestes bairros em pior estado de conservação encontram-se exemplares de arquitetura popular do Estado Novo, que, bem como os arruamentos, fazem referência inevitável ao passado português na ilha, que foi colónia até 1975. No entanto, a riqueza da ilha, o seu período de desenvolvimento maior, não se deve apenas aos portugueses, mas também aos ingleses.
São Vicente foi a última ilha de Cabo Verde a ser descoberta. A inexistência de fontes de água doce e de chuva regular tornava-a desinteressante para o império português. A ilha pertencia administrativamente a Santo Antão e nela eram largadas cabras e ovelhas. Em 1793 foi estabelecido um colonato em Porto Grande mas pouco mais havia a fazer na ilha, além de a guardar.
Não pensava assim a coroa do Reino Unido que, por volta de 1839, pediu autorização à administração portuguesa para se instalarem ingleses em São Vicente. A ideia concretizada pouco depois era fazer da ilha um ponto de reabastecimento de combustível dos navios vindos dos territórios britânicos ultramarinos a caminho de Londres.
O Porto Grande (hoje Mindelo) tinha condições ideais para o efeito: profundidade das águas e abrigo natural de ventos e marés permitiam receber navios de grande calado. Sem riquezas naturais, São Vicente passou a receber água potável para os que ali viriam a estabelecer-se e carvão para as caldeiras dos navios, sempre por via marítima. Em 1875, o estabelecimento da ilha como estação do cabo de comunicações transantlânticas traria ainda mais população com maior diversidade de origem para a ilha e mais dinheiro a circular. Em 1879 era oficializada a fundação da cidade do Mindelo.
Os mindelenses gostam de contar o início da história da sua cidade como se com ela provassem o que se costuma afirmar sobre o Mindelo: que é a cidade mais cosmopolita de Cabo Verde, que é onde as gentes são mais amáveis, criativas e artísticas. Para lá dessa mitologia, o reconhecimento destes habitantes da ilha como artistas universais durante o século XX e XXI vem dar mais ênfase a essa veia cultural que, dizem os são-vicentinos, pulsa em todos os residentes da ilha. A par dos artistas reconhecidos, há expressões populares que ganham cada vez mais adeptos. O Carnaval do Mindelo é a festa maior da cidade, há desfiles e concursos de agremiações que treinam durante grande parte do ano. Quem não faz parte de um dos coletivos assiste do passeio, mas dificilmente consegue ficar parado. Os estilos vão do mandinga ao das escolas de samba e aos carros alegóricos com crítica social e política. Esta é também a festa que mais turistas leva à ilha, numa terra que ainda recusa a sua vocação para as férias e o passeio. No resto do ano, é habitual ouvir dizer ao mindelense que os turistas aterram em SãoPedro e vão logo para Santo Antão.
«Quando muito passam uma noite aqui e depois apanham o barco para Santo Antão», dizem-nos na Residencial Jenny, onde um quarto custa, no máximo, 5900 escudos (cerca de 53 euros). As instalações podem não ser as mais bonitas, mas o terraço do pequeno-almoço oferece a melhor vista sobre a cidade do Mindelo, com o Porto Grande mesmo em frente – onde em breve vai erguer-se um terminal de cruzeiros – e a grande cratera do vulcão visível apesar de submersa no mar. A Residencial Jenny é uma das muitas unidades que nasceram para oferecer pernoitas para quem quer apanhar o barco bem cedo e chegar a Santo Antão no dia seguinte. Por enquanto, este é o maior trânsito turístico da cidade: os passantes que se dirigem à ilha verde, a escassos cinquenta minutos de ferry, e que oferece trilhos de caminhada sobre vulcões e vales verdes. Mas a face da ilha de São Vicente está a mudar e os novos hotéis que têm aparecido demonstram que as estadas mais longas são agora a aposta, a par da promoção da ilha e das suas belezas naturais. O Casa Branca Eco Chic Hotel é um bom exemplo dessa aposta que está a ser feita no alojamento de qualidade alta, a renovação do clássico Hotel Oásis Atlântico é outro e com bons resultados.
Se dúvidas houvesse, a origem vulcânica da ilha torna-se evidente ao olhar para a paisagem. A baía do Porto Grande sobre a qual se estende a cidade do Mindelo é uma cratera claríssima, em forma de ferradura, cujo rebordo mais a norte terá abatido há séculos. Na zona do Calhau, dois aglomerados de cinza e lava seca, onde ainda não se vê um pronúncio de verde, descendem de duas pequenas crateras, abertas como se os vulcões tivessem adormecido apenas ontem. Toda a terra é preta, cor do carvão e seca, quase toda por lavrar. A exceção é a Ribeira de Calhau, uma zona abaixo do nível do mar onde são cultivados alguns dos produtos hortícolas que alimentam São Vicente, mas não todos. A escassez de água leva a que seja impossível produzir alimentos em quantidade suficiente para toda a população que, diariamente, recebe carregamentos de bananas, papaias, cenouras, ervas de cheiro e pimentos vindos de Santo Antão.
Ir a Cabo Verde e não ir à praia é muito pior do que ir a Roma e não ver o Papa. Deve ser crime ou pecado ou um desperdício absurdo de temperaturas convidativas tanto no ar como no mar. A média de temperatura atmosférica em São Vicente é de 24 graus e a da água facilmente chega aos 22. E as praias são de areia branca. Há um fenómeno impressionante que torna a paisagem marcante para o visitante: ventos fortes transportam areia do africano Sara para a ilha. Quanto mais exposto ao vento leste, mais areia branca a costa acumula. É assim que desde a baía das Gatas (a do festival de música mais imponente do país) à Praia Grande do Calhau se formam dunas de areia dourada sobre as fajãs basálticas. O contraste impressiona. Mas a praia mais bonita de todas é mista, tem areia e cinza numa combinação única.
Salamansa, que dá nome a uma pequena povoação piscatória com cerca de mil habitantes, é a praia mais selvagem de todas. À entrada, uma escola de windsurf e uma creperia – «onde se comem crepes melhores do que em Paris», ouvimos os habitantes locais repetir – parecem querer descredibilizar esse título, mas o mar batido graças à orientação a norte oferece essa proteção necessária à manutenção da paz dos poucos banhistas enquanto uma encosta a pique de um extinto vulcão obriga à concentração de iodo no ar e o seu típico cheiro a mar.
A pequena povoação de Salamansa, a cinco quilómetros do Mindelo, ainda está por desenvolver. A água doce é racionada e vendida à população com hora marcada, o saneamento básico ainda não chegou, mas não é por isso que a terra deixa de ter alojamento local, comércios virados para o kitesurf, uma Casa do Porto e um Benfiquinha. As casas estão na sua maioria bem conservadas e pintadas de cores alegres e as pessoas que enchem as ruas são curiosas e afáveis. Salamansa também é terra de heróis. Cabo Verde é um ponto de nidificação da tartaruga-comum (Caretta caretta) no oceano Atlântico e em São Vicente são várias as praias onde é possível, entre julho e novembro, encontrar ovos de tartaruga que as autoridades e as ONG locais protegem. A praia do Lazareto à sombra do Monte Cara e mesmo em frente ao Mindelo é um dos locais mais escolhidos pelas tartarugas-comuns para a desova e a população costuma ser chamada a participar na proteção dos bebés até que estes cheguem ao mar. Nesta terra onde a carne de tartaruga já foi um petisco, o animal é hoje respeitado e protegido. É normal ouvir histórias de pescadores que resgatam tartarugas de redes presas no fundo do mar, trazendo-as para terra e chamando as autoridades locais. Os pescadores de Salamansa estão no topo da lista de salvamentos.
Quem vier a São Vicente não venha à procura de extremo conforto e resorts – não é esse o turismo. Esta foi a última ilha de Cabo Verde a ser povoada. Esperemos que seja a última a ser tomada pelas massas. Que fique sempre assim, lenta e quente. A lentidão convida à meditação – parafraseando Milan Kundera – e a meditação convida à criação, à literatura, à música, à arte, coisas que São Vicente continua a fazer como ninguém neste arquipélago.
Fonte: A Nação