Ampliar o mercado africano para os países africanos

44 Estados-membros da União Africana (UA) assinaram, na passada quarta-feira, o acordo que vai lançar o Tratado de criação da Zona de Livre Comércio Continental (ZLEC, na sigla francesa). 11 ainda não rubricaram, entre eles as duas maiores economias do continente: Nigéria e África do Sul. A ZLEC é um projecto emblemático da Agenda 2063, e vai além dos acordos comerciais tradicionais que apenas reduzem as tarifas.

 “Ampliando o mercado, é óbvio que se criam condições de competitividade para os países, nomeadamente no que respeita à industrialização. Esse é o objectivo geral da criação dessa zona. É evidente que há outros objectivos específicos, que têm a ver sobretudo com a criação de condições para a liberalização progressiva das trocas comerciais no continente. E desta forma, capacitar e ajudar os países africanos numa integração com o resto do mundo”.

O acordo foi assinado durante os trabalhos da cimeira extraordinária da União Africana e a zona de livre comércio quer fortalecer os fragmentados mercados africanos e assegurar uma presença, a uma só voz, na cena internacional nas negociações com outros blocos.

As negociações começaram em Junho de 2015, impulsionadas pelos Chefes de Estado e do Governo da União Africana. No final de 2017, a intensidade das negociações tinha escalado, culminando com a elaboração do próprio acordo e pavimentando assim o caminho para que a estrutura legal pudesse começar.

No entanto, existem ainda várias questões a necessitar de ser resolvidas antes que o acordo possa ser implementado. Estas incluem chegar a acordo sobre os mecanismos para solução de disputas, a finalização de vários anexos ao protocolo sobre bens e a preparação de ofertas para bens e serviços. Algumas destas questões exigirão compromissos desafiadores entre países com diferentes perspectivas.

Ainda este ano, segundo o calendário da União Africana, as negociações avançarão para a chamada “fase dois”, que se concentrará na criação de disposições relativas ao investimento, à concorrência e aos direitos de propriedade intelectual. Um ambiente facilitador para o e-commerce também tem sido avançado como um possível tópico adicional para esta segunda fase de negociações.

“Ainda estamos na fase de criação da zona”, sublinha Alexandre Monteiro, “é um processo. A construção efectiva de uma zona livre de comércio continental ainda precisa de muitas infra-estruturas, institucionais e físicas, que terão de ser trabalhadas. Há um caminho longo a percorrer mas, à partida, houve uma demonstração de interesse da criação de um novo paradigma, de novas condições para o desenvolvimento em África. Actualmente existem centenas de barreiras, fronteiriças e não só, no continente. O que dificulta tudo o que possa ser cadeia de desenvolvimento e de valor nas economias do continente”.

Para já, a certeza da União Africana é que a ZLEC permitirá criar o maior mercado do mundo, uma vez que envolverá os 55 Estados-membros da UA, com um Produto Interno Bruto (PIB) acumulado que ascende a 2.500 mil milhões de dólares (2.030 mil milhões de euros) e com um potencial de 1.2 biliões de consumidores.

Longe da unanimidade

No entanto, a criação desta zona está longe da unanimidade, com o Presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, a constituir-se como o líder da “oposição”. Para Buhari, quando muito, Abuja aceitará apenas “dar mais tempo para consultas”, disse citado pela DW, seguindo à letra as indicações da maior central sindical do país, o Congresso dos Trabalhadores Nigerianos (NLC, na sigla em inglês), que defendeu que a criação de uma ZLEC traria efeitos negativos para uma das maiores economias do continente.

“A assinatura da ZLEC fará bem a África, mas apenas no papel, pois levará ainda muito tempo a entrar em vigor e vai encontrar ainda muitos contratempos”, considerou Sola Afolabi, um consultor nigeriano em comércio internacional, citado pela agência noticiosa France Presse.

Já o Comissário da UA para o Comércio e Indústria, Albert Muchanga, defendeu, durante a cimeira de Kigali, que a indústria africana e a classe média do continente vão beneficiar com a eliminação progressiva dos direitos alfandegários entre os membros da ZLEC, lembrando o potencial da ideia, uma vez que apenas 16% do comércio dos países africanos é feito no continente. “Se acabarmos com os direitos alfandegários, até 2022 o nível de comércio intra-africano aumentará 60%, o que é muito, muito, significativo”, disse.

Alexandre Monteiro explicou ao Expresso das Ilhas que o não alinhamento das duas maiores economias do continente – Nigéria e África do Sul – deverá ser apenas temporário. “Há um período até Junho para que os países possam fazer a assinatura do tratado. Aliás, foi a Nigéria quem liderou todo o processo de preparação até agora. Há uma liderança política do Níger, mas toda a parte técnica foi nigeriano e egípcio. Vamos aguardar, estamos num processo. Neste momento a maioria dos países aderiu e até final do ano os outros devem também aderir”.

Para além da Nigéria e da África do Sul, países como o Lesotho, a Tanzânia, a Zâmbia, o Botswana e a Namíbia também não rubricaram o acordo. Já dos países de língua portuguesa, apenas a Guiné-Bissau não assinou. A ZLEC inscreve-se também no quadro de um processo que, até 2028, prevê a constituição de um mercado comum e de uma união económica e monetária de África, razão pela qual também está em curso a implementação do Passaporte Único Africano, tudo incluído na chamada Agenda 2063, que visa desenvolver económica, financeira e socialmente o continente até àquele ano.

“A África é um continente que não comercializa consigo mesma e com o resto do mundo. E, por causa disso, a grande população do continente não constitui nenhuma vantagem porque a África não tira proveito do tamanho do seu mercado, que é de 1,2 mil milhões de pessoas, e um PIB de mais de 2,3 triliões de dólares”, lembrou Erastus Mwencha, antigo vice-presidente da Comissão da União Africana e ex-secretário geral do Mercado Comum da África Oriental e Austral, citado pela DW.

Por seu lado, Gerrishon Ikiara, director associado do Instituto de Diplomacia e Estudos Internacionais da Universidade de Nairobi, no Quénia, observou que a África enfrenta muitas barreiras políticas, sociais e económicas à integração. “Há também às vezes conflitos entre a África francófona, a África de língua inglesa, a parte árabe magrebina da África no norte da África. E depois algumas economias dominantes como a África do Sul, a Nigéria e pequenas como o Ruanda”, explicou o economista.

E como fica Cabo Verde neste contexto. A visão do Ministro da Indústria, Comércio e Energia é optimista. “Para Cabo Verde é também um potencial, é um mercado maior”, diz ao Expresso das Ilhas. “Neste momento, estamos inseridos num mercado regional – a CEDEAO – de 300 milhões de habitantes, e estamos a falar de um mercado de 1.2 biliões. É sempre uma perspectiva de um potencial maior para o desenvolvimento de indústrias e serviços aqui no país, que está de acordo com a nossa estratégia de transformação de Cabo Verde numa plataforma comercial e industrial no Atlântico”.

De acordo com a União Africana, é frequente que países africanos enfrentem taxas de exportação maiores para seus vizinhos do que para países fora da África. As trocas comerciais entre Cabo Verde e o continente são residuais. Segundo os dados do INE, no 3º trimestre de 2017, as exportações de Cabo Verde tiveram a Europa como principal cliente de Cabo Verde, absorvendo cerca de 97,1% do total das exportações cabo-verdianas. Nas importações o cenário não se altera, o arquipélago compra essencialmente à Europa – 83,4%, com o continente africano a contribuir com 5,1%.

Da cimeira de Kigali, saíram algumas mensagens-chave. Uma delas, de Louise Mushikiwabo, presidente do Conselho Executivo da União Africana e ministra das Relações Exteriores do Ruanda, para quem os países africanos devem perceber que o que eles fazem da zona livre de comércio depende deles. “Têm que trabalhar no estabelecimento das estruturas administrativas, jurídicas e logísticas”, disse no discurso de abertura. “Se os países africanos querem aumentar significativamente o comércio intra africano, devem abordar desafios práticos, como regulamentos onerosos, acesso ao financiamento pelo sector privado, redes de infra-estrutura e simplificação dos processos alfandegários”, concluiu.

O presidente anfitrião da cimeira, Paul Kagame, lembrou que “este é um pacto histórico que há quase 40 anos está em construção e representa um grande avanço para a integração e a unidade africanas”. Como sublinhou ainda o Chefe de Estado do Ruanda, “estamos na direcção certa, mas precisamos de fazer crescer a nossa ambição. Os números não mentem e só nos podemos culpar a nós mesmos se não conseguirmos alterar esses números. É verdade que a mudança está a começar em África, mas é ainda muito lenta, temos de ser mais rápidos”, desafiou Kagame.

Apesar da assinatura do documento, desconhece-se quando será válido o acordo. O passo seguinte é a ratificação interna dos Estados signatários – serão necessárias pelo menos 22 confirmações para que entre em vigor. “Temos de fazer o nosso trabalho”, diz ao Expresso das Ilhas o Ministro da Indústria, Comércio e Energia. “Antes da ratificação, teremos de socializar, criar equipas nacionais, envolvendo fortemente o sector privado, até definir uma própria estratégia nacional de integração nesse espaço e nesse quadro. A partir daí o processo de ratificação será avançado”, conclui Alexandre Monteiro.

No discurso de encerramento da cimeira, o presidente do Ruanda, Paul Kagame, disse que se estava a assistir a um “dia memorável para o povo de África”, e pediu aos outros chefes de estado e do governo que aproveitassem o momento para dar força ao momento transformador que o continente está a viver. No entanto, ainda não se sabe quando estará concluída esta visão de livre circulação do comércio do Cairo à Cidade do Cabo.

AGENDA 2063

Por ocasião dos 50 anos (Maio de 2013) da União Africana (UA), o continente voltou a dedicar-se à realização da visão Pan-Africana de uma África integrada, próspera e pacífica, impulsionada pelos seus próprios cidadãos, representando uma força dinâmica na arena internacional. Para alcançar esta visão, a Cimeira do Jubileu de Ouro da União apresentou uma declaração solene em oito áreas abrangendo: o desenvolvimento social e económico; integração, governação democrática, paz e segurança, entre outras, como elementos da visão. Para tornar esta declaração solene numa realidade, a Cimeira do Jubileu de Ouro da União designou a Comissão da União Africana (CUA), apoiada pela Nova Parceria para o Desenvolvimento (NEPAD) da África, Agência de Planificação e Coordenação (NPCA), Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) e a Comissão Económica das Nações Unidas para a África (UNECA), para prepararem uma agenda continental para 50 anos através de um processo orientado para as pessoas, delineando a África que Queremos, isto é a Agenda 2063.

Após a adopção do Documento Quadro da Agenda 2063, pela Cimeira em Janeiro de 2015, como base para a transformação socioeconómica e integradora da África a longo prazo, a Cimeira mandatou a CUA para preparar o Primeiro Plano Decenal de Implementação da Agenda 2063 (2013-2023). Este plano, o primeiro de uma série de cinco planos de dez anos num horizonte de 50 anos foi adoptado pela Cimeira, em Junho de 2015, como base para a elaboração de planos de desenvolvimento a médio prazo, nos Estados membros da União, nas Comunidades Económicas Regionais e nos Órgãos da UA.

OS SETE OBJECTIVOS

  • Uma África próspera baseada no crescimento inclusivo e desenvolvimento sustentável.
  • Um continente integrado; politicamente unido com base nos ideais do pan-africanismo e na visão do Renascimento da África.
  • Uma África de boa governação, democracia, que respeita os direitos humanos, justiça e estado de direito.
  • Uma África pacífica e segura.
  • Uma África com uma forte identidade cultural, herança, valor e ética comuns.
  • Uma África, onde o desenvolvimento seja orientado para as pessoas, confiando no potencial do povo Africano, especialmente na mulher e na juventude, e nos cuidados à criança.
  • África como actor, unida, resistente, forte e influente e parceira a nível mundial.

Fonte: Expresso das Ilhas

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